Todas as manhãs como quem por impulso involuntário respira: levanta, e faz as mesmas coisas da mesma maneira. Era seis horas e já não se reconhecia. A pele negra reluzia ao acender o fogo do fogão usado do barraco. Havia planejado seus movimentos apenas uma única vez, depois, era como aparelho automático que tem programado as funções, bastava a ela o ato de acordar.
Quase, e quase era sempre, não sentia fome,e não se importava com isso.Acordava o marido,os filhos.O marido imundo de sempre a mesma bebedeira,lavava a cara e também não se reconhecia,mas para ele era pior ,nem ao menos recordava-se de quem era,de quem um dia foi. Sempre era daquela maneira:é assim que deve ser,imagina quando pensa; pensar gradativamente havia se tornado um ato cada vez mais raro.
Não era feliz,e não sabia também o que era ser( o que é ser feliz?),e por via das dúvidas também não era triste. Mesmo sem fome,comia:pois é assim que deve ser.Ou não se come durante o café da manhã com o marido?Mesmo que não seja o café, mesmo que não seja o marido,mas com certeza era manhã a mesma e fria fosse como fosse.
Como são bonitas as promessas,como são bonitas as novas esperanças ,renovadas dia a dia em um embrulho de cara lisa.Depois das esperanças , eram filhos,bebedeira,cafés da manhã ,dias, dias, dias.Todos tão ou mais pélagosos ou pior, pantanosos quanto.
-Toma, bebe... -dizia sobre o leite fervido. Dizia para qualquer, dizia para quem a respondesse.
O cônjuge e filhos saíam,ela ficava,o desemprego a forçava a ser desempregada doméstica.A manhã ficava mais leve,ligava o rádio na estação favorita,e pintava os semi-lábios de vermelho rubro,e sentia-se mais atraente-mas para quem?Dançava enquanto arrumava a casa e pensava no dia em que...Em qual dia mesmo?
No fundo sabia que dia não viria diferente,ou diferentes.Pensava então na próxima vida, quem sabe então acertaria? -Acertar o que? -Estava errada? Acaba vivendo,pois quem desiste não tem céu,disso sabia ,isso não a deixavam esquecer.E caso não houvesse outra vida ,quem sabe lá, o céu?-É, porque não o céu?
Não pensava muito nele,pois a vida, a outra, sabia como deveria ser,ou melhor, irá ser,gostava de ser otimista.Por isso o céu era sempre segundo plano.Mas enfim havia duas possibilidade.
Quem sofre merece o céu - Mas ela sofre?Se não sofresse mereceria ainda sim o céu?Também por via das dúvidas se considerava sofredora,e sentia-se melhor assim,mas não falava ,nem pensava em dizer algo sobre isso,e se reprimia ao pensar,tentava furtar-se a este pensamento,pois o fato de sentir-se bem a faria menos sofredora.- Por que não o céu?E se não a outra vida, o céu estava bem.
Estas horas eram de fato que tinha para si,apenas si, sem marido sem filhos,só si.Arriscava até não ser previsível dando uns gritos a frente do espelho,acompanhando os acordes da música da moda.E ria de si, com si.Ah!Estar com si era a melhor das companhias,era até quando falava mais, ria mais e vivia.
Dava o meio dia,comia,sentava-se, lia, as mesmas revistas, sempre escolhia as mesmas, gritar a frente do espelho era o menos previsível que poderia ser. Gostava de ver a seção em que aparecia uma festa .Pensava que poderia participar de festas assim na idealizada próxima vida.Ai lembrava que preferia a próxima vida, não há festas como estas no céu,há?Então era melhor mesmo a outra vida.
Dava seis horas,davam os filhos,dava marido, dava arroz pronto.
Servia e pra eles, era sempre a mesma mulher. Calada, frígida, com dor de cabeça.
Marido sentava-se à mesa,não dizia palavra.Era um monólogo-Mais arroz?Pra quem respondesse. Depois, dava novela com barulheira,davam filhos na cama, dava o bar,cheiro de cachaça,o que diziam ser sexo.Outra noite.
Todas as manhãs como quem por impulso involuntário respira: acorda e faz as mesmas coisas da mesma maneira.